– Tu é doutora?
Uns cinco minutos antes da pergunta, a jornalista havia dobrado a esquina à esquerda, rumo a uma ruazinha sem muita presença humana e onde barulheira da festa pública parecia menor. Um pouco de silêncio era essencial para atender ao telefonema originado da capital.
Enquanto gesticulava ao passar informações à interlocutora – uma colega da imprensa atrás de informações do setor público – percebeu o menino franzino parado bem à sua frente. Assim, sem receio de parecer impertinente, ele parou para ver e ouvir a conversa. E, sem cerimônia alguma, olhava fixamente para o rosto da jornalista.
Ambos estavam separados por, no máximo, uns 40 centímetros. E de nada adiantava um passo para trás ou para a frente ou uma volta de 360°. O menino continuava ali, determinado. Pela aparência física, devia ter uns sete ou oito anos. Pela impertinência – sim – no máximo uns três, como aqueles pequenos sem a menor consciência dos atos praticados.
– Oi? – finda a ligação telefônica, a jornalista indagou, esperando uma resposta à altura da inconveniência.
Ao contrário, como uma alienação momentânea a impedira de imaginar, recebeu a resposta de uma criança. A resposta que era pergunta:
– Tu é doutora?
Fiquei sem palavras. Na calçada da ruazinha tranquila, abaixei-me à altura do menino e retruquei:
– Como?
– Tu é doutora? – repetiu o garoto, balançando a cabeça como perguntando se eu era surda.
Estávamos no pequeno município alagoano de Carneiros, na última sexta-feira (29), onde a Prefeitura Municipal realizava festa anual em homenagem aos trabalhadores, com direito a praticamente tudo que uma boa festa do interior nordestino ainda precisa reservar se pretende ser mesmo boa: barraca de tiro ao alvo, quebra-potes, subida no pau de sebo, e até corrida de jegues, competição pra lá de acirrada no local.
Carneiros é um município com 8.290 habitantes, de acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2010. Há cerca de trinta anos a população estava acostumada a ter água de 15 em 15 dias nas torneiras de casa, situação melhorada agora com a duplicação da adutora da região. E eu estava lá a trabalho, como assessora de Comunicação da Secretaria de Estado da Infraestrutura, justamente para acompanhar a inauguração, também naquele dia, da obra realizada pelo Governo Estadual.
O menino me desconsertou. Seu primeiro nome é Bruno e a idade, como o corpo franzino não denuncia, é 10 anos. Os olhos claros, talvez verdes, se misturam com os traços e a cor negra, formando um lindo rosto. No corpo, camisa, bermuda e sandálias desgastadas.
Já de cócoras na calçada, tentei entender a insistente pergunta:
– Por que você acha que sou doutora?
– Sei lá, tem cara de doutora.
Rápida e discretamente, olhei-me de cima abaixo. Camisa xadrez de mangas longas dobrada acima dos cotovelos, calça jeans preta, tênis baixo preto e uma pequena mochila preta nas costas, contendo tudo o que eu precisaria para uma viagem de quinze horas de duração, entre ida e volta à capital Maceió, passando por dois municípios do Sertão e do Agreste de Alagoas.
Ou seja – dispensadas as discussões sobre moda-trabalho – absolutamente nada que me elevasse à condição de “doutora” suposta pelo garoto.
– Você conhece alguma doutora?
– Conheço.
– Quem é ela?
– A Raquel.
– E a Raquel parece comigo?
– Parece. Tu é doutora também?
– Não sou não.
Como jornalista com aguçado espírito felino que sou, fiquei curiosa para saber mais sobre Bruno. Menino falador, contou-me que morava numa rua “seguindo ali reto” e que tinha “um bocado” de irmãs e irmãos, não soube ou não quis dizer a quantidade exata. Disse morar com a mãe, dona de casa e criadora de animais, e que o pai “morreu faz tempo”. Tive vontade de conhecer a casa, mas “ali reto” era longe o suficiente para impedir a conciliação entre a visita surpresa à família de Bruno e o trabalho que me levara a Carneiros naquele dia.
Mas o que mais chama a atenção nas falas de Bruno são seus sonhos de menino.
– Você estuda, Bruno?
– Estudo, faço terceira série.
– Você gosta de estudar?
Pensou um pouco.
– Gosto, é bom.
– E o que você gosta mais de estudar?
– Ah, eu gosto mais de Matemática.
– E, você, quer ser doutor quando crescer?
– Eu não. Quero ser policial ou vaqueiro. Mas quero mais ser vaqueiro.
– Ah, é? E o que faz um bom vaqueiro?
– Como assim?
– Você quer ser vaqueiro por quê?
– Ah, pra montar jegue e cuidar dos animais.
– E tem algum vaqueiro que você gosta mais por aqui?
– Tem, o Nego Dão.
– E a escola?
– É boa.
No tempo em que permaneci em Carneiros, Bruno ia de um lado a outro me acompanhando, ora falando, ora fazendo perguntas. Ele falava da vontade de “ser logo grande” para montar cavalos e paquerar as meninas. E contava histórias que pareciam ser frutos da imaginação, como a viagem feita pilotando uma grande motocicleta até o município vizinho de São José da Tapera. A Maceió, disse ter ido apenas uma vez, visitar uma tia “que trabalha lá”.
Mas nosso primeiro contato ficou em minha memória. Imaginei como seria o dia-a-dia escolar dele e dos amigos, quantos vaqueiros haviam no município e quantos meninos da mesma idade tinham o mesmo sonho de ser vaqueiro, deixando a Matemática, a Língua Portuguesa, as Ciências em segundo ou em nenhum plano. E saí de Carneiros com imensa admiração pelo vaqueiro Nego Dão, que ao contrário da Escola, conseguiu ser eficaz o suficiente para alcançar e conquistar os sonhos do menino Bruno.
* Bruno permitiu ser fotografado, mas preferi não exibir suas imagens aqui. Espero que minhas descrições façam jus à beleza e à inquietude características.
** Texto revisado por Larissa Lima.
😉